Todo fã de música pesada sabe da importância de um show, algo que nos foi tirado pela pandemia. Diante das possibilidades atuais, os finlandeses do Nightwish anunciaram um concerto virtual em duas noites, o que seria sua primeira apresentação em dois anos e meio e a primeira execução das músicas do último álbum, o Human :||: Nature, lançado em 2020.
O evento ocorreria em um mundo virtual construído em 3D, e também marcaria a estreia do baixista Jukka Koskinen (Wintersun), em substituição a Marko Hietala, que decidiu se afastar por problemas de saúde. Ainda coube à banda esclarecer que Koskinen chega como temporário e não iria cantar as partes de Hietala, tarefa que seria dividida entre Floor Jansen (vocalista) e Troy Donockley (multi-instrumentista e co-vocalista).
Em meio a tantas novidades e desafios, é de se esperar que as expectativas estivessem altas. Esta resenha trata da segunda noite (29/05/2021), mas, antes de se entrar no mérito musical, é necessário falar um pouco sobre a experiência desse evento virtual: no lugar das velhas bilheterias e filas de entrada, vêm os processos online e a estabilidade do streaming, que correu tudo muito bem, antes e durante o evento.
No lugar das velhas casas de show, uma taberna virtual fantástica no meio das cataratas (Islander’s Arms). No lugar das velhas vans de excursão, o público é “transportado” a bordo de um zepelim virtual. No lugar da velha interação pré-show entre os fãs, vem o chat, que não tem tanta função, afinal, são milhares de pessoas falando ao mesmo tempo. No lugar dos velhos berros e ‘horns-up’, o silêncio. No lugar do velho mosh, o seu sofá. E no lugar da velha cerveja… bem, a velha cerveja, mesmo.
A qualidade de som e imagem HD não decepciona em nenhum momento. A dinâmica da filmagem é muito diferente de uma gravação de show “normal”, sem tantos cortes rápidos e edições. Tampouco há estouro de fogos, fumaça, holofotes, ou mesmo um palco padrão, como é comum em shows de heavy metal, e a banda toca de forma mais intimista.
Tudo isso ajuda a passar uma impressão de maior naturalidade, os músicos parecem mais “reais” e o espectador se sente, de fato, próximo à banda dentro de uma taberna exótica. Sem dúvida, uma experiência diferente, interessante e muito válida neste momento, apesar do alto valor do ingresso na moeda brasileira. Não à toa, foram mais de 150 mil espectadores de 108 países, segundo informações divulgadas pela banda.
Por fim, todos os músicos pareciam empolgados, mesmo com a estranheza de não se ter a energia da multidão, os gritos, a vibração e os aplausos. Ainda não é o ideal, mas, com certeza, já é um começo. A simples noção de que se trata de algo realmente ao vivo, onde banda, público e ambiente entram em uma sinergia inebriante, mesmo à distância, já serve para confortar mentes e almas que anseiam por um sopro de luz.
O grito de liberdade e significância bradado pela banda toma um novo sentido em tempos de pandemia, ao mesmo tempo melancólico, renovador e esperançoso: “We Were Here” (“Nós estivemos aqui”).
O SHOW
Enfim, começa a contagem regressiva na tela. Quando a espera finalmente acaba, pontualmente às 21h, somos apresentados ao belo cenário ao redor do Islander’s Arms, que segue a estética da banda: uma imponente mistura de elementos clássicos e de fantasia com toques obscuros, ao melhor estilo “Disney e Tolkien se embriagando com Byron nas montanhas”.
Uma rápida introdução de bateria emenda com o petardo Noise, do último disco, ótima escolha para a abertura. Logo ao fim da música, de forma repentina, porém perspicaz, toda a água que circunda o Islander’s Arms se transforma em lava e fogo, para a surpreendente execução da bombástica Planet Hell, ausente do setlist desde 2013, com Floor desempenhando muito bem as partes vocais que eram de Marko. Pronto! Com um começo desses, qualquer público já está ganho, virtual ou presencial.
A partir daí, a banda viaja pelo seu aclamado repertório, alternando momentos de peso, como Dark Chest of Wonders e Last Ride of the Day – vale frisar que o único momento em que Troy não se mostra bem adaptado é para cobrir os vocais potentes de Marko, sobrando um vazio na música – com outros mais calmos, como Élan e Sleeping Sun, onde o canto de Floor Jansen, estranhamente, faz cair um cisco no olho do ouvinte.
Entre as mudanças das estações do ano na paisagem externa do Islander’s Arms, já que as imagens são exibidas a cada intervalo e ajudam a construir o clima, mais faixas novas são apresentadas aos poucos como How’s the Heart, Harvest e a complexa Pan, cujo fraseado soou ainda melhor ao vivo, sendo difícil imaginar que não se torne uma das favoritas do público.
Além disso, claro, ainda sobra espaço para aquelas mais conhecidas até pelos fãs nem tão fervorosos, como Nemo, Storytime e Ever Dream, onde a falta de Hietala é compensada com um esforço extra de Floor no vocal e de Troy na segunda guitarra, o que torna a canção mais encorpada.
Completam o set Alpenglow e a folk I Want My Tears Back, que poderia ganhar um descanso e ser trocada pela novíssima e estimada Shoemaker, a qual marcou presença apenas na primeira noite.
Por outro lado, o melhor sempre fica para o final. Em Ghost Love Score e The Greatest Show on Earth, duas peças épicas que estão entre as favoritas de 11 a cada 10 fãs, a banda mostra o porquê de ser tão glorificada em todo o planeta. Dessa vez, Floor Jansen consegue se superar e apresentar um desempenho ainda mais brilhante do que de costume, em uma das melhores versões de Ghost Love Score que já se viu.
Aliás, falar de Jansen é “chover no molhado”, já que para surpresa de ninguém, a vocalista entrega uma performance de alto nível e distribui arrepios durante todo o show, combinando graça e elegância com a fúria de seu famoso ‘headbanging’ e suas explosões vocais.
A moça já cansou de demonstrar que domina qualquer tipo de palco, e não haveria motivos para crer que poderia ser diferente em um palco virtual, mostrando-se, como sempre, um dos pontos mais altos da apresentação.
Há de se pontuar que Marko ainda faz falta em alguns momentos, pois sua voz e presença são únicos, mas o jogo segue e a banda contorna sua ausência de forma eficiente. Quanto ao novo membro, a presença do competente Koskinen ainda é um pouco tímida, mas seu baixo aparece bem, preenche os espaços e entra em sintonia fácil com a bateria de Kai Hahto (ex-companheiro de Wintersun), enquanto Emppu Vuorinen (guitarra) brinca com os companheiros e guia as seis cordas de forma sólida.
De fato, a afiada banda é uma engrenagem perfeitamente alinhada, entretanto, a crua verdade é que enquanto houver Tuomas Holopainen (teclados) compondo e Floor Jansen cantando, a maestria diferenciada do Nightwish está garantida.
Repertório do show:
Noise
Planet Hell
Alpenglow
Élan
Storytime
How’s the Heart
Harvest
Dark Chest of Wonders
I Want My Tears Back
Ever Dream
Nemo
Sleeping Sun
Pan
Last Ride of the Day
Ghost Love Score
The Greatest Show on Earth