Quando os deuses se pronunciam, os mortais param para escutar. Com esse sentimento no peito e cercado de expectativas no pandêmico ano de nosso senhor 2021, paramos as máquinas para receber o anúncio do primeiro álbum de estúdio do Iron Maiden em 6 anos, o duplo Senjutsu.
Abstrações à parte, caso o estimado leitor estivesse fazendo intercâmbio em Marte, o novo trabalho da instituição britânica foi precedido pelo single The Writing On The Wall, um surpreendente rock ‘n’ roll setentista de estilo southern distópico e guitarras retumbantes. A sonoridade sem precedentes gerou especulações sobre o conteúdo do álbum e, de fato, não seria exagero afirmar que se trata do mais variado da carreira da banda.
Quem esperava uma abertura com o pé na porta, já sofre um baque ao se deparar com a faixa-título, uma epopeia ‘Sabbathiana’ em forma de marcha militar, que, se não é uma das grandes favoritas, cumpre bem o papel de criar o clima e convocar o ouvinte para a guerra, que deslancha de vez em Stratego. Com sua melodia de explodir o peito e uma sensacional levada galopante da bateria de Nicko McBrain, tal faixa mostra o Iron Maiden trabalhando sua sonoridade clássica de uma maneira renovada, digna de emocionar grandes arenas e de se tornar uma das preferidas dos fãs.
Na sequência, após viajar ao deserto com a já mencionada The Writing On The Wall, o ouvinte recebe a bela introdução acústica de Lost In A Lost World, com a nítida influência de Planet Caravan (Black Sabbath), vozes dobradas e coros de fundo fazem pensar se o disco no play realmente é do Iron Maiden.
A música ainda evolui para uma cadência que remete à fase X-Factor (1995), até ceder lugar à curta Days Of Future Past, um petardo melódico que parece saído direto da carreira solo de Bruce Dickinson (vocal), difícil de desagradar. Já a curiosa The Time Machine é um verdadeiro exemplar de rock Zeppeliano, contagiante, recheado de um groove exótico e com toques progressivos, que novamente passa longe dos padrões do Iron Maiden.
Abrindo o disco 2, Darkest Hour é uma balada atmosférica muito sóbria, que transporta o ouvinte direto ao encontro de Churchill com os nervos estourando em uma sala esfumaçada. Direta ao seu próprio estilo e sem mudanças de tempo, a faixa parece destinada a ser uma das mais subestimadas da história da banda. Então, o clima se altera e vem uma canção de exaltação heroica em Death Of The Celts, uma épica “continuação” de The Clansman, faixa do álbum Virtual XI (1998), com o instrumental invocando uma dança folk celta no meio da música.
Uma nova mudança de clima traz The Parchment: cadenciada, soturna e com uma atmosfera nublada, quase gótica. A complexa peça apocalíptica é a mais longa e uma das mais interessantes do disco, com variações que não cansam os tímpanos, uma excelente interação entre as guitarras e um Bruce cavernoso, atuando como mensageiro do fim do mundo.
Porém, mesmo com tantos grandes destaques, não seria exagero dizer que o melhor, mais uma vez, ficou para o final. A construção melódica arrepiante, daquelas que levam até um tijolo ao delírio, faz os onze minutos de Hell On Earth passarem como se fossem três. Momentos assim pedem um festival open air, e também permitem entender como uma banda com mais de 40 anos de estrada pode gerar um frisson maior do que torcida de futebol.
Por sinal, parafraseando justamente um narrador esportivo, se essa for a última música a ser gravada pelo Iron Maiden, quão magnífica ela é! Eis que termina a audição e o impacto é imenso, o que é sempre um bom sinal. Trata-se de um álbum denso, complexo, profundo e ousado, que clama por repetidas reproduções para que se entenda por completo, uma verdadeira jornada. Claro que em se tratando de uma banda de tal nível, é impossível não traçar comparações e referências a trabalhos anteriores, mas de forma alguma o álbum segue o conceito de revisitar e compilar as diversas fases da carreira, como foi o anterior, The Book of Souls (2015).
O estilo storytelling permeia todo o disco, com uma apresentação primordial do versátil e inexplicável sr. Dickinson, assim como a composição de Steve Harris, que, dessa vez, entrega suas odisseias com extremo esmero, à altura do gabarito que possui. A bateria merece destaque e as guitarras apostam em licks reproduzindo as linhas vocais, o que reforça as melodias marcantes como um dos pontos altos do disco, cujo grande mérito, todavia, não reside em um único aspecto, mas sim na diversificação do conjunto, muito bem pensado para ser exatamente como é.
Embora improvável que o álbum caia nas graças dos detratores de sempre, simplesmente por não ser o Powerslave, aqueles que apreciam a boa música já podem perceber que a banda entrega um registro essencial de sua discografia e consegue a façanha de entrar em um maduro “terceiro auge” de sua carreira produtiva, após os anos 1980 e o começo dos 2000. Interpretando seu próprio conceito, a palavra japonesa Senjutsu transmite algo como “utilizar tática e estratégia para melhor aplicar o poder e a sabedoria”, e é exatamente isso que os lendários britânicos fazem aqui.
Senjutsu é a certeza de uma experiência de imersão fantástica. É um disco feito para bater fundo na alma, uma jornada para “viajar”, para sentir, apreciar e repetir, digerindo a cada vez uma nova nuance, talvez acompanhado de um bom vinho. Um disco que envolve, abraça e não deixa o ouvinte sair, sempre querendo saber o que vem depois. Todos podem dormir tranquilos no universo da música pesada, pois os Deuses ainda olham para a Terra e não parecem querer se aposentar.
Track listing de Senjutsu:
1. Senjutsu (Smith/Harris) 8:20
2. Stratego (Gers/Harris) 4:59
3. The Writing On The Wall (Smith/Dickinson) 6:13
4. Lost In A Lost World (Harris) 9:31
5. Days Of Future Past (Smith/Dickinson) 4:03
6. The Time Machine (Gers/Harris) 7:09
7. Darkest Hour (Smith/Dickinson) 7:20
8. Death Of The Celts (Harris) 10:20
9. The Parchment (Harris) 12:39
10. Hell On Earth (Harris) 11:19
Nota: 10