Tio Carlos, vez ou outra, arruma confusão no grupo de WhatsApp da família, principalmente por compartilhar notícias falsas por lá, mas tem bom coração.
Sempre atencioso, responde a qualquer mensagem e tem comentário para tudo. Prestativo, participa das decisões sobre as ceias de Natal e Ano Novo. Ele é tipo uma formiguinha, ama doces e pede, encarecidamente, que a vovó não se esqueça do pavê ano após ano.
Ele sempre lembra com tristeza da ceia de natal de 2017, quando a iguaria foi substituída por um delicioso manjar de coco.
Tio Carlos, pode não concordar, mas é um cara tradicional. Ele quer o pavê. E repete, propositalmente, a mesma frase ano após ano.
“É ‘pavê’ ou ‘pacomê’?”
Eu já revirei os olhos ao ouvir a piada, confesso. Adolescente chato que era, queria a piada da moda, não a repetição do gracejo datado.
O ano de 2020 ensinou muita coisa, inclusive, em aceitar o que cada um é, do que gosta, do modus operandi individual. É assim que tio Carlos lida com a reunião familiar, sempre tão tensa. Mecanismo dele. Pra quê reclamar?
Tio Carlos comemorou, ontem à noite, a escalação do Iron Maiden para o Rock in Rio 2021. Aquele homem ligeiramente calvo, estatura média e buço suado não é fã fervoroso de rock, mas ama a Donzela de Ferro e, possivelmente, o Rock in Rio é o único festival de música brasileiro que ele acompanha.
E conta, com emoção, da ida ao Rio de Janeiro para a edição de 2001 do festival, quando o Iron Maiden gravou o disco ao vivo, o petardo “Rock in Rio”, de 2002. Faz até o gesto dos chifrinhos, feliz da vida, quando conta das proezas do vocalista Bruce Dickinson no palco.
“Aquilo sim é um show de rock”, ele diz, enquanto bate nas minhas costas e questiona qual é o artista indie estampado na minha camiseta.
Preciso confessar publicamente: fugi do tio Carlos em natais passados. Ele chegava por um lado, corria para outro com uma desculpa estapafúrdia qualquer. “Puxa, acabaram as uvas. Vou pegar mais.”
Hoje, estou ansioso para revê-lo. O tio Carlos, digo. Mesmo que, neste ano, seja impossível devido à pandemia. E, admito também, assistiria feliz da vida a um show do Iron Maiden todo aglomerado. Outra impossibilidade.
Já reclamei muito da presença constante de algumas atrações no Rock in Rio. Se visse o nome do Iron Maiden em um cartaz do festival, tinha arrepios. Bradava: “Mas de novo? Onde estão as novidades? Só falta escalarem Guns N’ Roses mais uma vez também.”
A banda se apresentou nas edições de 1985, 2001, 2013 e 2019. Voltará em 2021, no Dia do Metal, marcado para 24 de setembro, ao lado de outras atrações anunciadas ontem, como Megadeth, Dream Theater e Sepultura (acompanhado da Orquestra Sinfônica Brasileira).
“Tudo o que direi é: enquanto vocês nos quiserem, continuaremos voltando para ver vocês no Brasil!”, disse o vocalista do Iron Maiden, Bruce Dickinson, em comunicado divulgado pelo festival.
Pô, Dickinson tem toda a razão. Enquanto as pessoas pedirem por eles, por que não voltar? Qual é, realmente, o problema de ser feliz com algo que já se conhece e gosta? De onde vem essa ânsia por novidades o tempo todo? Por que desprezar a inocente e divertida piada do pavê?
Ao longo deste ano de 2020, questionei algumas posições e reclamações. Vale seguir na luta por novidades em um festival massivo como o Rock in Rio? Por que insistir em ver novas atrações naquele palco gigantesco se o que o pessoal quer, mesmo, é assistir ao Iron Maiden, não é, mesmo?
Em 2019, o tal Dia do Metal foi possivelmente o dia mais intenso lá na Cidade do Rock – a chegada ao local, pelo BRT, foi extremamente caótica e abarrotada, mas deixo a reclamação para outro dia.
Era 4 de outubro de 2019 e havia gente para todo lado. Era um público infinitamente entregue ao que rolava no palco. Sepultura, Helloween e Scorpions também tocaram no Palco Mundo, o principal do evento.
Rock in Rio é o festival do choque de realidade, de perceber e entender o que é realmente popular. Não é todo artista que consegue reger como um maestro uma multidão de 100 mil pessoas. Bruce Dickinson e o Iron Maiden são desses poucos que, no Brasil, dominam essa massa com facilidade.
Lutar, reclamar, comentar contra o Iron Maiden no Rock in Rio é exatamente como pedir pelo fim do pavê depois da ceia de Natal.
É fazer coro por uma musse de maracujá e, ao final de todo o encontro natalino, ver o doce semi-derretido e comido pela metade. No caso do Rock in Rio, é ver algum artista com hype, ultra-popular, mas que não segura a massa de público como um Iron Maiden da vida.
E, ainda por cima, ouvir o tio Carlos dizer no resto do ano que o pavê teria sido uma escolha melhor. Com toda a razão. O pavê, na nossa família, é a opção mais certeira. Agrada a todo mundo, uns mais, outros menos, mas não tem erro.
Neste ano, resgatarei uma camiseta do Iron Maiden do fundo do armário, prometo, e darei um jeito de achar uma receita de pavê para fazer aqui em casa.
Inclusive, já planejo enviar uma foto do doce pronto no grupo da família, ansioso pelo comentário do Tio Carlos.
“É ‘pavê’ ou ‘pacomê’?”
Por Pedro Antunes
Fonte: UOL