“Se você é um daqueles que diz: ‘Eu amo o Pink Floyd, mas não suporto a política do Roger’, vaza pro bar”! A mensagem foi clara e não deixou nenhuma sombra de dúvida: não concorda com o posicionamento político e social de Roger Waters, não era para amolar, ser o tonto da vez, e se dirigir ao boteco mais próximo para beber algum rabo de galo para firmar o pulso.
Portanto, vamos usar a mesma tática nesta resenha: se você é do tipo que usa com chapéu de alumínio, acredita em qualquer balela que surge nas redes sociais, crê nas lendas de ‘zap zap’ que seu tio Zé Tião espalha aos quatro ventos e ainda tem político de estimação; bem, vá para o bar, não encha o saco e não continue lendo esta análise, até porque, caso você reze em tal cartilha, jamais entenderá o teor do texto, tampouco conseguirá captar a importância de um artista – e ativista – da excelência de Waters.
Bem, regras e balizas claramente estabelecidas e elucidadas, vamos aos trabalho! Demorou, mas finalmente a This Is Not A Drill Tour aportou na “Cidade Maravilhosa” com um espetáculo caprichado nos mais íntimos detalhes: da produção de palco ao repertório; dos atributos sonoros às performances individuais dos músicos e suas encenações, tudo, literalmente tudo, fora um atrativo aos sentidos.
A nova versão de Comfortably Numb, que é essencialmente mais sombria e soturna que a original, lançada em 1979, foi a escolhida para começar os longos trabalhos da noite. Os versos, assim como o emocionante refrão, sempre foram um convite aberto aos milhares de fãs os entoarem em alto e bom som; e em tais ditames e princípios, a canção fora recebida e festejada pelo público carioca e fluminense.
A noite já estava abafada, contudo o clima esquentou ainda mais ao som da icônica Another Brick in the Wall, com direito a fogos de artifício e, decerto, com o coral de milhares de vozes. O autoritarismo e os poderes constituídos, governamentais ou não, foram massacrados pela potente The Powers That Be; na mesma toada implacável, The Bravery of Being Out of Range chegou amparada pelo discurso do desprezível Ronald Reagan – que o diabo o tenha -, bem como seus atos abomináveis contra o povo guatemalteco.
As atrocidades de outros políticos como George H. W. Bush, Bill Clinton, George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump também foram pertinentemente rememoradas; os desatinos do senil e perdido Joe Biden foram cinicamente taxados como em progresso.
Uma versão reduzida da intimista The Bar deu as caras, e contribuiu para dinâmica do espetáculo. A trinca formada por Have a Cigar, Wish You Were Here e Shine On You Crazy Diamond foram de tirar o fôlego, tanto pela performance instrumental quanto pelos contornos emocionais ao recordar no telão imagens dos ex-companheiros de Pink Floyd: Syd Barrett (guitarra), Nick Mason (bateria) e Richard Wright (teclado). Nenhuma imagem ou citação ao vocalista e guitarrista David Gilmour fora feita, o que corrobora com a ideia de que as arestas entre as partes ainda continuam vigentes.
Depois da breve e necessária pausa para recuperar o fôlego, o concerto voltou para sua segunda etapa ao som da pujante In the Flesh e da debochada Run Like Hell; esta última infelizmente não trouxe Roger paramentado em traje militar, como vinha acontecendo na perna europeia da turnê. Todavia, a aula de guitarra e o ensinamento de como usar o efeito de delay ficaram intactos e a plateia pôde se deliciar com as viciantes melodias.
Déjà Vu foi serena e zen apenas em suas doces levadas acústicas, visto que no telão as mensagens não poderiam ser mais austeras e necessárias: foda-se o antissemitismo, preconceito, racismo, patriarcado, drones, terror e ódio. O recado dado destacou que todas as pessoas, sem exceção, necessitam de direitos e respeito; soa tão óbvio e elementar, entretanto, são dois pilares da existência humana vilipendiados pelo topo da pirâmide social e econômica.
Is This the Life We Really Want? seguiu indagando a atual sociedade, que é focada fundamentalmente no consumo, cujo o ser perdeu lugar, voz e espaço para o ter. Marcas como Coca-Cola, Visa e Rolex deram as caras no telão para enfatizar o corpo social focado no consumo. Houve espaço também para a necessária crítica ao fundamentalismo religioso, que vem, ao longo das últimas décadas, tomando ainda mais espaço nas bancas políticas. E a história está aí, sempre presente, a nos recordar que tais movimentos são um mergulho sem volta ao abismo da ignorância e atraso.
A turma mais saudosista de uma tal banda de rock progressivo pôde abrir o sorrisão no rosto com o combo de Money, Us and Them, Any Colour You Like, Brain Damage e Eclipse. Da sequência ‘floydiana’, Two Suns in the Sunset foi a menos óbvia e recordou o derradeiro ato de Waters com a banda britânica, The Final Cut. Outside the Wall encerrou a emocionante noite com direito a apresentação dos músicos e, um a um, se retirando do palco para um desfecho contemplativo e tocante.
Em pouco mais de duas horas e meia de show, Roger Waters entregou ao público carioca parte de seu arsenal musical/crítico aos disparates que assolam a planeta. Temas como Time, Pigs, Dogs, One of These Days, Hey You e Breathe ficaram de fora, mas é o tipo de sacrifício que se faz quando se tem uma discografia da excelência e tamanho como a de Waters.
E, mais do que nunca, Roger Waters é um artista necessário; é uma voz indispensável, capital, se preferir, contra às retóricas ocas e sem embasamento lógico e humano que assolam principalmente as relações sociais e econômicas nos quatro cantos do globo. Ninguém é obrigado a concordar, muito menos gostar de sua militância, com isso, ninguém precisa bradar impropérios ao artista e ao seu público; então, caro reacionário, vaza pro bar, ou submerja em sua própria estupidez, mas pare de amolar.